terça-feira, 19 de outubro de 2010

Convite à loucura

Por: Brennan Manning

Durante dois anos, tive o privilégio de viver com uma comunidade cristã conhecida como Irmãozinhos de Jesus e ver o tema deste livro se desenvolver nas tarefas mais simples do mundo comum. A vida de um irmãozinho tem como modelo a vida oculta de Jesus de Nazaré, os muitos anos que ele passou na obscuridade dedicado ao trabalho manual e à oração antes de embarcar em seu ministério público de pregar, ensinar e curar.

Passei os primeiros seis meses na pequena aldeia de Saint-Rémy, na França, a uns 150 quilômetros a sudeste de Paris. Nosso grupo de sete (dois franceses, um alemão, um espanhol, um eslavo, um coreano e eu) mudou-se para Farlete, outra pequena aldeia no deserto de Zaragoza, na Espanha. Nos 12 meses em que vivemos ali, passamos a amar o calor, a simplicidade e a profunda amizade de um remoto povoado espanhol com uma população de seiscentos habitantes.

Durante o ano, muitas vezes ficávamos temporariamente sozinhos, retirados em uma montanha alta e rochosa que, além de muito distante da vida urbana, também é um dos mais remotos eremitérios da Europa. Em muitas e longas horas de oração nas cavernas, eu percebia de uma nova maneira que o conhecimento redentor de Jesus Cristo substitui todo o resto, permitindo-nos experimentar uma liberdade que não é restringida pelos limites de um mundo que se encontra aprisionado.

Ao mesmo tempo, reconheci que muitas das importantes questões teológicas na igreja de hoje não são importantes, nem teológicas, e que, num tempo caracterizado (em algumas partes) pela confusão, encenações baratas e infidelidade, o que Jesus exige não é mais retórica, mas renovação pessoal, fidelidade ao evangelho e comportamento produtivo. Conforme disse o cardeal Paul-Émile Léger em seu adeus a Montreal: "O tempo de falar acabou".

A mente de Cristo
Aprender a pensar como Jesus não é, naturalmente, pouca coisa. Entretanto, muitas vezes vivemos como se tivéssemos firme domínio de algo tão completamente fora de nosso próprio modo de compreender e agir. Como se tal coisa fosse possível! Portanto, devemos seguir em frente na busca pela mente de Cristo, sabendo que a compreensão plena é meta impossível. Contudo, há muito que descobrir ao afastar o coração dos desejos que não têm lugar no evangelho de Cristo - segurança, prazer e poder - e encarar, em seu lugar, as paixões que ocuparam a alma e a mente de Cristo.

Verdade
A narrativa evangélica sobre a purificação do templo é uma cena desconcertante (Jo 2:13-22). Ela nos apresenta o retrato de um Salvador enfurecido. O Cordeiro submisso de Deus que disse "Tomem sobre vocês o meu jugo e aprendam de mim, pois sou manso e humilde de coração" (Mt 11:29) improvisou um chicote e circulou furiosamente pelo templo, destruindo bancas e mostruários, espancando os mercadores e dizendo: "Saiam daqui! Aqui não é o Wal-Mart. Vocês não transformarão um espaço sagrado num passeio de consumo! Mentirosos! Visitar o templo é um sinal de reverência a meu Pai. Fora daqui!".

Ainda mais desconcertante é a paixão ferrenha de Jesus pela verdade. Onde o dinheiro, o poder e o prazer mandam, o corpo da verdade sangra de mil feridas. Muitos de nós temos mentido a nós mesmos por tanto tempo que nossas reconfortantes ilusões e justificativas assumiram uma aura de verdade; nós as apertamos no peito como uma criança aperta um ursinho favorito.

Transparência
Ter a mente de Cristo Jesus, pensar seus pensamentos, compartilhar seus ideais, sonhar seus sonhos, pulsar com seus desejos, substituir nossas reações naturais em relação às outras pessoas e situações pelo interesse de Jesus; e, ainda, assumir o sistema mental de Cristo tão completamente que "A vida que agora [Filho] vivo no corpo, vivo-a pela fé no [Filho] de Deus, que me amou entregou por mim" (Gl 2:20) - Tudo isso não é o segredo ou o caminho para a transparência. É a própria transparência.

Distrações
Para verificar onde você realmente está com o Senhor, recorde o que o entristeceu no último mês. Foi a consciência de que você não ama Jesus o suficiente? De que você não buscou a sua face em oração com a freqüência necessária? De que você não se importou com sua pessoa o bastante? Ou você ficou abatido por causa de uma falta de respeito, de uma crítica de uma figura de autoridade, ou em razão de suas finanças, da falta de amigos, de medos sobre o futuro ou pelo aumento de peso?

De modo inverso, o que o alegrou no último mês? Uma reflexão sobre a sua eleição para a comunidade cristã? A alegria de dizer suavemente: "Aba, Pai"? A tarde em que você se retirou durante duas horas, levando só o evangelho como seu companheiro? Uma pequena vitória sobre o egoísmo? Ou as fontes de sua alegria foram um carro novo, uma roupa de grife, um grande evento, o sexo, um aumento salarial ou a perda de meio quilo em seu peso?

Obra do reino
O chamado de Cristo à unidade nos ordena a agir para além do sentido isolador dos limites pessoais e das barreiras normalmente associadas ao comportamento automotivado. Já não posso mais olhar os outros como pessoas com quem não tenho ligação. Em vez disso, a unidade em Deus me chama a considerar todas as pessoas e coisas como extensão da família de Deus, na qual estou incluído. Não há limites entre a parte de Deus que vive no "eu" e a parte que vive em toda a criação.

A vida de Francisco de Assis oferece uma excelente idéia do que significa viver em unidade com a criação de Deus. Suas palavras e seus gestos são a manifestação de um coração completamente entregue a Deus. Francisco compreendeu que a beleza das coisas sensíveis é a voz com a qual anunciam Deus. "É você que me faz bonito, não eu, mas você". Naquele momento, Francisco descobriu aquilo que as coisas criadas ocultavam, mas agora a criação proclamava em alto som. Foi sua reflexão sobre elas e a atenção que ele lhes dedicou que soltou as vozes das coisas numa exclamação: "Como é bonito aquele que nos fez!".

*Os trechos deste artigo foram extraídos do livro Convite à loucura, de Brennan Manning.


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